Primeira elucubração filosófica: Gödel

Sabe aquelas crianças que na idade de cinco anos já estão abrindo os rádios para ver se há trompetistas dentro deles? Definitivamente eu não fui uma dessas crianças. Minha curiosidade esperou até os quatorze, quinze anos, mas quando bateu, bateu forte, e então eu precisava saber de tudo, conhecer de tudo, ter opinião formada das coisas a partir de uma base coerente. Ou, como uma vez nos disse o Sofista, todo cientista deve ser um pouco obsessivo compulsivo. Um pouco, e para muitas pessoas esse pouco não passa de um grande eufemismo.

Há um livro de história da filosofia que gosto bastante, em especial do título: O sonho da razão. Porque esse é o início da filosofia, o grande movimento da filosofia pagã em relação ao passado. Não mais explicações pelos Deuses. Não mais um mero porque Zeus quis assim. A partir de então, a explicação dos fenômenos e das causas naturais deveriam ser buscada pela razão, e não pela tradição. Se podemos pensar por nós mesmos, por que não exercitar esse direito? E é claro que as primeiras explicações eram bastante simplórias. A essência de tudo? A água. Não! A terra. Não! O ilimitado? Não! Ah, o ar! Basicamente qualquer coisa servia, desde que houvesse uma narrativa racional por trás dela. É assim que a filosofia surge. Foi assim que buscamos conhecer.

Mas como ter certeza de que o que descobrimos é mesmo válido? O que sabemos hoje não pode ser refutado amanhã? Certamente. Não apenas pode, como provavelmente será, com exceção, talvez, das verdades matemáticas. Uma vez provado um teorema matemático, ele é eterno e imutável. Desde que nos limitemos a um pedaço de papel, o teorema de Pitágoras sempre será válido, ou a fórmula para a área de um triângulo. Não é a toa que grandes filósofos tentaram replicar o método matemático em outras áreas do conhecimento, como a própria filosofia. Leibnitz, por exemplo, quis criar uma espécie de linguagem universal combinatória que, a partir de alguns axiomas, pudesse responder a qualquer questão filosófica. Dessa forma, ele imitaria para a filosofia o que Euclides fizera para a geometria: Dado seus cinco axiomas, toda a geometria Euclidiana poderia ser provada a partir deles.

O método axiomático, no entanto, sempre teve um problema. Se tudo deve ser provado a partir dos axiomas, não podemos provar os próprios axiomas. Em geral, é claro, os axiomas são verdades auto-evidentes, como por exemplo: Por dois pontos pode-se traçar uma única reta. Esse é o primeiro axioma de Euclides. No entanto, nem toda verdade evidente é uma verdade, e a própria geometria de Euclides nos deu esse exemplo. Seu quinto axioma sempre foi motivo de discórdia. Basicamente ele diz que duas retas paralelas encontram-se apenas no infinito. Parece óbvio, não? Pelo que conhecemos de retas paralelas, elas vão continuar paralelas para sempre. Mas alguém já seguiu retas paralelas até o infinito? Não que se saiba. Por esse motivo, vários matemáticos tentaram provar o quinto axioma a partir dos quatro primeiro, e sempre falharam. Acontece que o quinto axioma de Euclides não pode ser provado, porque é realmente um axioma. Mas há um problema com ele: Não é uma verdade.

No século XIX, os matemáticos aprenderam a construir geometrias onde o quinto axioma de Euclides não é válido. E mais! No século XX, com a teoria da relatividade geral, aparentemente a geometria do nosso espaço não é Euclidiana, ou seja, não obedece o quinto axioma de Euclides. Então o que parecia auto-evidente não apenas não é uma verdade matemática, como também não parece ser uma verdade do mundo real. A moral da história é que confiar em nossos instintos pode não ser uma boa ideia. Ou melhor: Que as vezes verdades auto-evidentes não são confiáveis. A geometria de Euclides nos mostrou isso.

No século XIX, os matemáticos tentaram axiomatizar outros sistemas, como a aritmética. A aritmética, como você já deve saber (ou passa a saber agora), é a área da matemática que lida com números e aquelas operações que aprendemos quando crianças: Somar, multiplicar, dividir, etc. A maioria das pessoas sabe fazer contas, mas para o matemático saber fazer contas não é suficiente: Ele quer construir um sistema coerente. A partir de axiomas, deduzir todas as outras propriedades do sistema através de provas. Mas se você se utiliza de axiomas baseados no senso comum, e não pode mais confiar no senso comum, então tem um grande problemas nas mãos.

Uma solução foi proposta por Gottlob Frege, um lógico Alemão, e o Sofista adorava nos contar essa história. A ideia de Frege era fundamentar a aritmética através da lógica, porque a lógica consiste basicamente da manipulação de símbolos que não dependem do senso comum. Basicamente você trabalha com símbolos e relações entre esses símbolos, e se você consegue construir toda a aritmética através da manipulação desses símbolos, então você conseguiu construir um sistema consistente e completo. E um dos maiores matemáticos do século XIX (e XX), David Hilbert, mostrou que, se você conseguir axiomatizar a aritmética, então poderá também axiomatizar a geometria e outras áreas de matemática. Então vamos voltar para Frege.

Ele fez um trabalho brilhante. criou uma lógica fantástica, escreveu um grande livro chamado de leis básicas da aritmética, em dois volumes! Mas a vida é uma caixinha de surpresas. O segundo volume de sua grande obra ainda estava na prensa quando um jovem desconhecido chamado Bertrand Russell encontrou um pequeno grande erro no trabalho de Frege: Ele não era consistente. O que isso significa? Significava que ele dava margem a uma preposição que era tanto verdadeira quanto falsa, e isso arruinava com tudo. E o que é uma preposição que pode ser tanto verdadeira quanto falsa? Basicamente, é um paradoxo. E amamos paradoxos tanto quanto os odiamos.

Um exemplo clássico de um paradoxo? O paradoxo do mentiroso. Imagine se alguém diz o seguinte: Essa afirmação é falsa. Certo, qual o problema? Bom, uma afirmação somente pode ser duas coisas: Verdadeira ou falsa. Então digamos que a afirmação é verdadeira. Mas se ela for verdadeira, então o que ela diz é verdade. Logo, ela é falsa. Ao contrário, digamos que ela seja falsa. Então o que ela diz é uma mentira. Logo, ela não pode ser falsa, e é verdadeira. Ou seja: Se ela é verdadeira, é falsa. E se é falsa, é verdadeira. Um paradoxo! Basicamente foi isso que Russell descobriu no sistema de Frege. Se você for uma pessoa curiosa, o que Russell descobriu foi que o sistema de Frege permitia a construção do conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo, e se você já estudou teoria dos conjuntos na vida, poderá ver como esse conjunto é um grande paradoxo.

Então o projeto de Frege fracassou, mas não o projeto de axiomatizar a aritmética a partir da lógica. De fato, Russell tomou esse projeto para si, e juntamente com o filósofo Alfred North Whitehead, escreveu um livro gigante em três volumes que contem basicamente símbolos estranhos. As vezes eu o abria na biblioteca na universidade só para admirar aquela linguagem alienígena. Então ele conseguiu? Particularmente eu acho que ninguém além de Russell e Whitehead chegou a “ler” até o fim, mas vamos dizer que eles chegaram em algum lugar. Mas (e sempre tem um mas), então apareceu Gödel.

Kurt Gödel foi um lógico e matemático Austríaco que aos vinte e cinco anos provou um teorema um tanto quanto estranho. Ele provou que um sistema como o idealizado por Frege não poderia ser ao mesmo tempo completo e consistente. Em outras palavras, se você quer um sistema lógico consistente, ou seja, que não contem paradoxos, esse sistema terá proposições que são verdadeiras, mas não podem ser provadas. Explique novamente. Como assim? Como você pode saber que são verdadeiras, se não provou? Estranho, não? Bastante. E é estranho também explicar porque os matemáticos nunca concordaram em exatamente o que Gödel provou. O que podemos dizer são três coisas: Primeiro: Os matemáticos não esperavam por isso, e os teoremas de Gödel (são dois) indicam que a axiomatização da aritmética é um problema mais sério do que eles imaginavam. Segundo: Existe pelo menos um vídeo no youtube dizendo que Gödel provou a existência de Deus. Eu não abri para ver. E Terceiro: Podemos dizer o que Gödel achou que ele provou.

Bom, Gödel é um homem do início do século XX, e o século XX, em ciência, foi marcado pela ascensão do positivismo lógico. Eu acredito que hoje a grande maioria dos cientistas sejam positivistas lógicos. Stephen Hawking certamente foi um dos seus maiores defensores. O positivista lógico, em geral, defende que a ciência tem limites de atuação bem definidos e não pode falar de conceitos metafísicos, como por exemplo acerca da realidade do mundo, ou dos números, ou o que seja. E desde que não seja levado aos extremos, essa é uma grande ideia. Digo que não deve ser levado aos extremos porque alguns positivistas do século XIX, como Ernst Mach, criticavam a teoria atômica porque não podíamos ver (testar, experimentar com) átomos, e logo uma teoria que utilizasse átomos deveria ser desconsiderada. Ocorre que Mach estava errada e a teoria atômica de Boltzmann foi capaz de explicar diversos fenômenos físicos, ainda que naquela época não houvesse qualquer prova da existência de átomos. Mas considerar a existência de átomos para construir modelos físicos é uma coisa, enquanto tentar tirar conclusões metafísicas de modelos físicos (ou matemáticos) é outra bem diferente.

Nas últimas décadas (e nos últimos anos) vimos uma profusão de livros esotéricos acerca da teoria quântica, falando de alma quântica, vida quântica, sexo quântico, etc. Acontece que a mecânica quântica não diz nada acerca de nada disso. A mecânica quântica fala acerca de partículas e átomos. Ela pode prever como tais objetos vão se comportar em certas experiências. Utilizar a mecânica quântica para falar acerca da realidade de auras é exatamente o que os positivistas lógicos querem evitar. A ciência não tem nada a dizer sobre a existência de Deus (ainda que muitos cientistas afirmem o contrário), porque Deus é um conceito não definido pela ciência. E foi nesse ambiente de, digamos, ceticismo, que Gödel cresceu.

Mas Gödel não era um positivista lógico. Ele era o oposto disso. Não quero dizer que Gödel ficava falando de aura quântica ou escrevendo livros de auto-ajuda. Mas ele acreditava que seria possível tirar conclusões metafísicas, desde que bem fundamentadas. Melhor dizendo: Gödel acreditava que seria possível falar acerca da matemática, utilizando matemática. Esse é um conceito um tanto difícil de explicar. Vamos pensar em linguagens normais, como o português. Utilizamos o português para falar (ou ao menos eu uso), mas também podemos falar acerca do português. Eu posso dizer, por exemplo, que português é uma língua difícil. Então eu estou falando sobre o português, utilizando o português. Não é difícil. Mas utilizar a matemática para falar sobre a matemática, isso já não é tão simples nem mesmo de imaginar.

Mas Gödel acreditou que ele seu teorema não era um teorema apenas de matemática, mas sobre a matemática. Um teorema metamatemático, por assim dizer. Porque se não podemos criar sistemas lógicos consistentes que são capazes de provar todas as proposições verdadeiras, então existem proposições que não podem ser provadas, mas ainda assim são verdadeiras. Gödel era um Platonista (de Platão, o grande filósofo grego), ele acreditava na realidade dos números, e ele queria, de alguma forma, alcançar essa realidade.

Ao fim, você pode perguntar novamente: O que Gödel realmente provou? E ninguém sabe. Ou melhor, grandes lógicos e grandes matemáticos darão respostas diferentes. Um dos maiores lógicos do século XX, Wittgenstein, acreditava que os teoremas de Gödel não falavam nada acerca de metamatemática. Para ele, é simplesmente impossível a existência de metamatemática. Outro grande matemático do século XX, Sir Roger Pensore, acredita que Gödel mostrou que o cérebro humano não pode ser resumido a um sistema formal de computação. Ou seja, nosso cérebro vai além de um mero computador. E por aí vai.

Por que eu contei essa história toda? Primeiro, para que você tome cuidado com jovens inteligentes que vasculham seu trabalho em busca de erros. Eles podem sacanear sua obra prima. Segundo, o século XX nos mostrou que os grandes pilares do conhecimento humano, a lógica e a matemática, são mais estranhos do que em primeira vista pareciam ser. O sonho da razão pode ser apenas um sonho. Talvez a realidade como um todo não esteja completamente ao nosso alcance.

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