A cerimônia do adeus

Não sei porque, fomos passear pela federal de Pelotas,e terminamos na biblioteca, na área de humanas, onde Eva retirou da estante um livro sobre Platão, da grossura da bíblia, e me mostrou. Como é bonito, queria poder ler, mas não tenho tempo. Ela não tinha tempo porque havia o curso universitário que estava fazendo, não me recordo qual. Mudava constantemente de graduação, da mesma forma como a maioria das garotas por quem eu me interessava naqueles anos. Minhas amigas, ou meus flertes, costumavam ser pessoas que não conseguiam seguir um plano de estudos, que haviam largado a faculdade em algum momento de suas vidas, ou terminado o curso sem a menor motivação, sem nenhuma ideia do que fazer em seguida. Porque estávamos todos perdidos. Mas Eva não era apenas um flerte. Eu a amava.

Foi a última grande paixão que conheci pelo mIRC, e um acaso. Em dois mil e seis ele já estava às mínguas, mas eu permanecia sabe-se lá Deus porque, talvez esperando por ela, se em um certo dia apareceu uma garota procurando pelo meu apelido. Eu usava outro, mas me identifiquei. Por que ela me procurava, quis saber. Porque havia conversado comigo fazia tempo, ela disse, e se lembrava. Eu não. Ainda assim, prazer novamente, sou João. Sou Eva. E passamos para um novo futuro, porque Eva e eu nos reconhecíamos, tínhamos os mesmos interesses e as mesmas indagações. Também ela já havia começado uma faculdade de física, e largado, se queria conhecer o mundo, mas o mundo tantas vezes escapa das fórmulas, então as fórmulas não são boas o suficiente, românticas o suficiente, vivas o suficiente. Descrevem os fluidos e não o mar. E começamos a conversar cada vez mais, e eu disse que ia até ela, e ela não sabia, porque ela nunca teve certeza, nunca disse com convicção: Vem. Minha sobrinha a chamava da garota dos pés, porque era a única foto que eu tinha dela: Seus pés. Ou melhor, seus pés dentro de meias, dentro de um sapato. Nada mais. Eu somente vi seu rosto quando desembarquei na rodoviária de Pelotas. Trinta horas de viagem, mas não diretas. No caminho ainda parei em Joinville para conhecer outra garota. Outro flerte, mas sem flerte algum. Eu estava apenas riscando os nomes da minha lista de promessas. Porque naquele momento só havia Eva. Ainda assim, precisamos cumprir as promessas. E então ela era linda, porque seria de qualquer forma.

Passamos um final de semana em uma cabana, na praia, somente nós e uns outros turistas, como um casal de velhos norte-americanos que estavam rodando o país em seu trailer, com o cachorro. A romantic weekend, a senhora disse, e eu assenti. Dávamos as mãos. Sim, exatamente. Acreditaria ela que eu vim de tão longe apenas por um par de meias? Mas não longe o suficiente, porque não havia longe o suficiente. Eu experimentava a distância como quem não a teme, seja ela, o tempo ou qualquer dos conceitos abstratos que inventamos. Sequer o medo. Eu a amava e era meu significado, mas ela nunca teve a certeza. Nem quando me disse que queria tudo comigo, ela tinha certeza, porque esse é um sentimento que eu entendo bem, essa dúvida que nos assola, esse temeridade de que o ponto seja final e não apenas uma parada, de construir sua casa sem antes ter dado uma volta completa no mundo. Será que eu tinha a certeza? Naquele final de semana, certamente. Mas e se eu ficasse, como seria dentro de um ou seis meses? Havia largado a faculdade, naquele momento eu não tinha nada além de Eva e um lobo que seguia a construir suas estradas.

Eu disse para ela que a amava? Devo ter dito, porque durante os dois anos seguintes eu a amei e a odiei, e ela foi a única pessoa que eu odeia na vida, porque deveria ser nós contra o mundo, nós como o olhar de Caspar David a fitar o mundo, um casal de românticos com seu pano de fundo, mas ela nunca soube de nada disso porque eu nunca disse para ela, porque os diálogos imaginários transcorriam melhor na minha imaginação, mas também e principalmente porque eu nunca soube me render. E ela me escreveu duas cartas seguidas, com apenas uns dias de diferença, e na primeira dizia que me amava e na segunda já não me queria mais, e então eu fui novamente, dessa vez as trinta horas seguidas, e mais trinta horas na volta, sessenta horas viajando dentro de um ônibus, por apenas duas horas com ela, mas há coisas que somente podem ser ditas pessoalmente, que é preciso fazer da forma exata como devem ser feitas, porque nem sempre há atalho para o significado, e é esse o motivo pela qual escrevemos um livro e não apenas o enredo, ou uma frase. Porque palavras não dizem nada.

Antes de nos encontrarmos, combinamos de cada um gravar um compact disc para o outro. Foi meu único romance que envolveu música, porque aos poucos eu deixava de me interessar por música, cada vez mais mergulhado nos livros, na filosofia e na história. O dela ficou melhor que o meu, certamente. Quanto tempo passamos juntos, ao todo? Eu não sei. Naquele ano, escrevi-lhe diversas cartas. Duas, três dezenas. Nunca enviei nada, porque não havia nada a ser dito. Porque eu não tinha ideia do que dizer-lhe. Eu a amava e a odiava e pronto, mas não era apenas ela que eu odiava e sim tudo ao meu redor. Eu havia afundado até um ponto que não conseguia enxergar mais nada na minha frente. O velho João havia descido aos infernos. A história é um pesadelo da qual não consigo despertar, essa frase martelava na minha cabeça, minha única lembrança de Ulisses, de Joyce. Então descobri que Kerouac também a havia anotado em seu diário, e achei irônico. Porém alguns anos depois eu percebi que eu próprio tirara a frase do contexto, que me lembrava dela de forma equivocada, que Joyce nunca havia escrito isso, mas sim: A história é um pesadelo da qual tento despertar. Tento!

No ano seguinte eu voltei em Pelotas, mas por outra garota. Levaria alguns anos até que eu falasse novamente com Eva, e mesmo assim apenas frases isoladas. Eu mantive minha distância e ela a dela. Em sua carta de despedida, ela me mandou uma pintura que havia feito e queria que ficasse comigo. Era uma tempestade. Quando você nasceu, Ben, ela me deu os parabéns. Disse que eu deveria estar feliz, porque essa sempre fora minha vontade. E é verdade. Eu sempre esperei por você e por seus futuros irmãos. Eu sou pai desde que sou gente, bem antes de você estar na barriga de sua mãe. Mas sempre houve o lobo, e o lobo sempre foi um segredo. Agora ele está morrendo, e eu tenho uma dívida para com ele. Um grande funeral. E todo grande funeral carece de um grande discurso.

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