Feliz aniversário, Mimse

Hoje é aniversário dela e eu a amo. Já há muitos para desejar-lhe um feliz aniversário, de forma que posso fazer isso apenas em minha cabeça. Eu a amo e está tudo bem. Ainda penso nela constantemente, várias vezes ao longo do dia, mas está tudo bem. Se demoramos a esquecer é porque teve significância, e a única questão em aberto é o que fazemos com ela. Eu tento transformar essa verdade em beleza, já outros partem para o caminho contrário. Da última vez que encontrei com Fiona, ela recebia mensagens perturbadores de um ex-namorado. Ela simplesmente cagava e andava para isso, já o havia deixado no passado fazia gerações. Era ele que não conseguia seguir em frente e seguia empacado como o burro da história.

Eu dizia para Fiona que todos iriam se apaixonar por ela, mas nem todos pelo motivo certo. Ela era bonita, inteligente, uma futura médica, o perfil de um grande casamento onde o homem, sabe-se lá quem, havia conquistado a esposa perfeita, o que pode ser um grande ideal para certas classes. Mas isso não basta. Mesmo quando nos apaixonamos, isso não basta. É um motivo genérico demais e não diferencia o nada de ninguém ou o seis do meia-duzia. Quando eu dizia para a aniversariante que eu a amava, não lembro de ter mencionado o motivo, o que foi um grande erro. Também acho que eu nunca disse para sua mãe, Ben, o que foi outro grande erro. E sei que é por isso que eu conto essa história, para dizer, ao menos de forma póstuma, tudo aquilo que nunca disse com o sentimento presente, feito os grandes epitáfios da era romana onde o falecido, não podendo sofrer os revés da sinceridade, deixava por escrito todas as palavras que não tivera coragem de dizer em vida. E a multidão se aglomerava para ouvir e se deleitava com as confissões.

Aos vinte e três anos eu ainda era inocente, e também Fiona, e éramos ambos inocentes a descobrir o mundo. Ela dizia que eu era pesado demais e eu dizia que não, mas ela não aceitava minha negativa e mesmo no dia que eu tentei dançar com ela no meio da livraria, ela retrucou dizendo que dançar com ela no meio da livraria não me tornava menos pesado, mas eu ainda retruco que não, eu nunca fui pesado ou triste, apenas o habitante solitário de um universo quixotesco invisível aos olhos. Quando saímos com seus colegas de faculdade alguns meses depois, todos aqueles futuros médicos e médicas, eu não conseguia me reconhecer em nenhum deles, em nenhuma frase dita por eles, e sei que ela também não, ainda que tentasse, de quando em quando, fazer as graças. Eu me reconhecia na menina que aos quatorze anos lia literatura brasileira, que era fã de Almodóvar e pegou do chão uma latinha para jogar no lixo, que algum idiota não teve o trabalho. Havia muita beleza ali, e espero que a beleza não tinha ido embora.

Ela foi, com certeza, minha primeira quase namorada, e não digo namorada porque nunca namoramos. Passamos um mês juntos, mas nunca namoramos, e eu sei disso porque quando perguntei se estávamos namorando, ela ficou calada, e já ali estava a informação de que eu não deveria esperar muita coisa, mas ainda assim eu esperei, e esperei até que na véspera do natal ela disse que não estava sentindo o que seria esperado, de forma que não fazia sentido em ficarmos juntos. Dois meses depois, estava de volta como ex-namorado, o mesmo que havia terminado o relacionamento no mês anterior, e o cara morria de ciúmes de mim por todas as coisas que ela havia lhe contado sobre seu amigo astrônomo, ainda que ele fosse tipo um galã de cinema e eu, bem, eu parecia comigo. Então depois de um tempo eles terminaram novamente, mas nunca nos envolvemos novamente. Fiona nunca ficava muito tempo sozinha, pulava de namoro em namoro, geralmente com homens que pareciam ter muito pouco a ver com ela, e eu estava sempre enrolado em novas aventuras ou simplesmente não achava que era o momento. Porque, se Fiona me lembrava muito meu lado caseiro de exatas, não me recordava em nada meu outro lado de estradas e histórias. E a cada dia que passava a balança pendia mais para esse ponto. Então nos desencontramos, e nos provavelmente nos desencontramos para sempre.

Durante o mês que se passou, no entanto, aconteceu uma coisa. Em algum momento eu contei para Fiona a história de Luana, e ela ficou puta porque eu não havia dito nada para ela no dia, que segundo sua filosofia de vida as meia verdades são ainda piores que as mentiras, e ficamos sem nos falar por um tempo, no que eu fiz o que eu sabia fazer de melhor: Pensar em um plano romântico. Não bastava levar-lhe uma rosa. Eu iria plantar uma rosa, e quando a rosa crescesse eu iria levar a rosa que eu mesmo havia plantado, porque isso sim é romantismo! Então eu vesti minha roupa e fui a quatro floriculturas diferentes, mas nenhuma delas vendia sementes para rosas. Por que você não leva uma rosa já crescida?  Eles perguntavam, e eu dava os ombros. E qual a graça? Isso qualquer um faz. E provavelmente a internet não devia ser tão informativa naquela época, porque eu lembro de ir consultar nas páginas amarelas onde eu conseguiria comprar sementes para rosas, mas não achei. Ao fim, desisti. Mesmo que tivesse conseguido e a rosa sobrevivido por algum milagre, quando ela tivesse brotado já não teria mesmo muita serventia. Ainda assim, eu sabia muito bem porque havia pensando naquilo. Era acerca do tempo, e da necessidade do tempo para que a verdade se realize. Era sobre o caminho e sobre os processos. Era sobre a espiral onde ao voltarmos ao início é que nos afastamos dele.

Uma vez Fiona me disse que gostava de mim porque sabia que, se um dia brigássemos, bastaria depois que sentássemos um ao lado do outro, e que nossos pés se tocassem e então ela colocaria a cabeça no meu ombro e estaria tudo bem. Não tivemos tempo para provar sua teoria, mas eu acredito que ela estivesse certa. Eu sempre me vi fazendo isso, simplesmente me sentando ao lado da pessoa e segurando sua mão, e ela saberia que para mim estava tudo bem. Depois daquele mês, nos tornamos amigos. Quando havia um bom filme no cinema, especialmente algum lançamento de Almodóvar, eu a convidava e costumávamos passar uma tarde agradável, ainda que ela sempre se atrasasse ao ponto de um dia eu entrar na sessão e deixa-la do lado de fora. Ainda me lembro de momentos que ela certamente já se esqueceu, como na fila do cinema, onde um garotinho atrás de nós brincava descontroladamente com um balão de hélio do pica-pau, e ela disse que nunca achou que diria isso, mas que havia um pau furiosamente batendo contra a bunda dela, e eu ri. São nossos baús de memórias. No seu livro de introdução à história da matemática, Howard Eves escreveu uma dedicatória que nunca esqueci:

To Mimse, in fond recollection of countless such things as eating ice cream together in the middle of a lake during the rain.

 

 

 

Deixe um comentário