A leveza do ser

Freud escreveu que a depressão é a perda da capacidade de amar, e talvez ele esteja certo. E a garota que começa com S. me disse algo parecido, pouco antes que eu fosse embora. Não é possível amar quando não se ama a si mesmo, e talvez ela esteja certa também. Mas então precisamos despertar desse estado de melancolia, e eu só teria meu primeiro despertar do meu vários anos depois, quando recebi o primeiro baque da minha vida. Mas isso seria depois que conheci sua mãe, não antes. Naqueles dois anos antes de conhece-la, eu só estava afundando.

Como havia largado a faculdade de astronomia, eu não tinha muita coisa para fazer além de ler e estudar, porém precisava ganhar dinheiro, o que me fez retornar para meus planos originais de infância: A programação. Eu havia aprendido a programar bem cedo, e migrar para uma linguagem de programação mais moderna não exigiu muito esforço. Afinal, eu gostava de aprender, e me empenhei em aprender as mais utilizadas linguagens comerciais da mesma forma como me empenharia em aprender qualquer novidade que me interessasse, e em poucos meses eu já estava programando páginas e aplicativos para a internet. E foi então como voltei a ganhar dinheiro. Dando aulas de programação e desenvolvendo sistemas.

Essa área comercial não me animava muito, mas o dinheiro no fim do mês me permitia continuar com minhas viagens e ainda economizar um pouco. Eu comecei um pequeno negócio junto com vendedor que ficava encarregado de encontrar os clientes, enquanto eu fazia a parte técnica do empreendimento, e fiquei nessa pelos quatro anos seguintes. Sem o menor entusiasmo, porém também sem muito enfado. E no decorrer daquele ano o mIRC, que já vinha acabando, praticando encerrou suas atividades. Sua rede brasileira, a BrasNET, somente fechou em definitivo em maio de 2007, porém já antes disso não passava de um deserto de almas. Estava começando a ascensão as redes sociais, marcadas no país principalmente pelo surgimento do Orkut.

Eu não posso culpar o Orkut porque foi nele que eu conheci sua mãe, mas nunca foi a mesma coisa como era o mIRC. As pessoas não entravam no Orkut para conhecer outras pessoas, mas para estar entre elas. O tempo das conversas aleatórias, do encontro de apelidos, das conversas animadas com desconhecidos, estava acabando. As redes sociais cresceriam cada vez mais, se popularizariam cada vez mais, mas nada disso mudou o fato de que as pessoas pouco conversam. Elas opinam. Elas se expressam. Mas não conversam. Mas eu não desisti tão facilmente. Eu ainda estava lá, atrás delas, como um bom perseguidor de histórias.

As redes sociais, alias, permitiram alguns acontecimentos engraçados. Um deles foi quando eu vi uma entrevista de uma atriz de teatro infantil, no jornal local, e resolvi procurar pelo nome dela no Orkut. Achei, a convidei para ir ao cinema e ela aceitou, exatamente como os pais dela devem ter ensinado para ela nunca fazer. Aceitar o convide de um estranho que a foi procurar na rede social depois de ver na televisão. A chance de eu ser um psicopata obsessivo não era assim tão pequena, mas eu não sou um psicopata e tudo saiu bem no cinema, tirando o fato de que ela escolheu o filme. E então tudo estava acabado entre nós. Fomos ver um daqueles filmes espirituais pseudo-científicos que falam sobre aura quântica e jornadas místicas, apresentados por Deepak Chopra ou qualquer um desses caras que não sei diferenciar, e no fim da sessão ela estava radiante porque o filme havia esclarecido todas as suas dúvidas sobre a razão da nossa existência, então eu me limitei a ficar calado e acompanha-la até o carro.

Eu provavelmente estava deprimido demais até para discutir com ela sobre isso. Nos anos seguintes, eu tive um pequeno número de ataques de pânico durante apresentações para possíveis futuros clientes, e então passei a fazer uso de ansiolíticos mais regularmente, porque eu nunca sabia quando uma nova crise poderia ser desencadeada. Nunca me passou pela cabeça ir procurar um psiquiatra ou sequer um psicólogo. Toda essa coisa do baque que minha ex-professora havia me falado, havia simplesmente desaparecido da minha cabeça. Eu somente continuava, sem saber direito para onde estava indo.

E se eu afundava naqueles anos, quem afundava junto comigo era o partido dos trabalhadores. Em dois mil e cinco começaram a aparecer os escândalos, a compra de votos, o pagamento por fora ao parlamento, e nossa república, como diria Bob Jeff, estava ruindo. Mas não. Hoje sabemos que apenas rachava. E para mim o partido já não significava mais nada, porque não era mais o partido do sonho utópico que eu tinha quando mais novo, e sim aquele que resolveu se tornar, não se sabe bem o porquê, um partido realmente existente. Então me vinha em mente a questão que Kundera colocou em um de seus livros, de que o problema não é que eles fodam com a gente, mas que eles fodam com a gente e ainda digam, sorrindo com escárnio, que é para nosso próprio bem.

Sábado, 25 de Julho de 2005. Como é possível viver de tempos em tempos, a esperar a verdadeira dica que tudo caminho em direção contrária e é necessária uma guinada? Na reta real sermos os zinteiros, zzzzindorminhocos, sonolentos, bocejantes caras compridas e narigudas em um sinal de trânsito, mandando os carros irem…

Sábado, Julho 23, 2005. Acho que o que queremos é um aviso, um momento único, uma sutileza do destino. Não que queime uma árvore em nossa frente, seria brusco, irritante, prepotente. O que queremos, ou o que eu poderia querer, ou deveria querer, ou quero, fracasso como astrônomo, físico ou escritor, é a idealização da história pessoal antes da derrocada, porque mesmo a derrocada é poesia. Histórias de alicerces, de proa e popa, de navegantes. Um olhar sobre o oceano, ao horizonte, em alto mar.

Quinta-feira, Novembro 16, 2006. Não é assim que tem de ser, mas é assim que é. Ou está sendo. Talvez o ultramodernismo me engula. Não. A depressão é a perda na capacidade de amar. Novamente: A perda na capacidade de amar. A perda, a dor, o fracasso, tudo se supera, mas o vazio não tem condição de superação, o vazio é o mais óbvio dos argumentos, aquele que só se contradiz, aquele que somente se nega. Cada palavra é a negação do vazio. Cada grunhido. Cada gesto. Negar o vazio não dói. Negar o vazio é percebe-lo em sua mais completa forma. Argumentar contra o vazio é abrir as cortinas do palco onde o vazio performático tripudia de nossa incoerência aguerrida. Nosso tolo círculo mais-que-vicioso, verbo que toma lugar ao mais-que-perfeito do passado que libertou-se e crê na sua própria pessoa. Perder a capacidade de amar é escrever apenas isso.

 

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